Uma reflexão sobre o cenário atual do trabalho a partir do olhar ergonômico. Assim foi a XIII Jornada de Ergonomia, realizada pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP, em meados de novembro. O evento trouxe especialistas de diferentes instituições do Brasil e da França para discutirem o tema “Um mundo em transformação: desafios da flexibilização/precarização do trabalho”. O pesquisador da Fundacentro, José Marçal Jackson Filho, foi um dos debatedores.

Na mesa “Cenários atuais sob a ótica da Ergonomia”, Marçal mostrou que na década de 1990 já se anunciava uma crise do trabalho, que continua atualmente. No mundo do trabalho, há um cenário de retirada de direitos. Já as instituições públicas passam por longas crises de baixos recursos e aposentadorias sem reposição. Mas, em sua avaliação, há formas de resistência que enfrentam esses problemas.

O pesquisador da Fundacentro falou sobre a possibilidade de uma ergonomia pública a partir da perspectiva crítica da ergonomia da atividade. “A questão pode ser como fazer ergonomia neste cenário atual? Para quem fazer? Por que fazer? Quem são os nossos públicos? Parece ser uma questão essencial – para quem temos trabalhado e a quem temos contribuído a melhorar. Além disso, a noção de trabalho é antes de tudo uma noção política, que coloca a dimensão política”, afirmou Marçal.

Em sua avaliação, a promulgação da NR 17 (Norma Regulamentadora de Ergonomia), por exemplo, foi uma resposta a um grupo de trabalhadores nos anos 1990, os digitadores, e contou com essa dimensão pública. Para se efetivar uma ergonomia pública na atualidade, o pesquisador defendeu uma aproximação com os trabalhadores, com os setores de serviço – espaço no qual a ergonomia poderia ter um papel importante – e com outras disciplinas como a sociologia, a antropologia, a geografia, a administração, a engenharia de produção.

“Temos que ter uma aproximação com os diferentes públicos porque no meu entender a noção de atividade de trabalho é uma mediação muito interessante, uma chave de leitura para os diferentes contextos que invadem o trabalho, sendo um conceito operante para se entender a realidade”, concluiu Jackson Filho.

O trabalho no centro dos debates

A centralidade do trabalho foi uma das questões colocadas durante o evento. Os ergonomistas podem ajudar a trazer o trabalho para o centro dos debates. O professor da Poli/USP, Laerte Sznelwar, defendeu a construção de caminhos cuja dinâmica permita a construção do sujeito. O cenário de flexibilização e precarização do trabalho deve ser objeto de reflexão da ergonomia. “As relações se fazem precárias há muito tempo, mas com a nova legislação será legal flexibilizar situações que não estavam previstas na lei. Todos podem viver cenários flexíveis. Há um discurso que garante melhorias, mas outro mostrando perspectivas sombrias”, avaliou.

Algumas questões são primordiais como a necessidade de se criar laços de solidariedade na sociedade como um todo. Na questão da Previdência Social, por exemplo, não se podem comparar reservas feitas individualmente com sistemas sociais. Outra questão é a gestão do tempo de trabalho e do tempo como um todo, especialmente, a partir da mudança na legislação trabalhista. O reforço da subjetividade em termos do sujeito e da coletividade é um desafio que precisa ser enfrentado. “As condições efetivas do trabalho estão de acordo com as aspirações do sujeito?”, questionou Sznelwar.

A professora Julia Abrahão, da Universidade de Brasília – UnB, fez uma retomada do percurso da ergonomia no Brasil, afastando-se das questões de mobiliário e partindo para uma visão mais ampla que olhasse às demandas dos trabalhadores. Um processo que se voltou à automação, à questão das LER/Dort (Lesões por Esforços Repetitivos /Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho), ao teleatendimento e depois para o setor de serviços. O cenário atual, em sua avaliação, é agravado pela perversidade do desemprego.

“Será que estes trabalhos contribuíram para que os trabalhadores se tornassem protagonistas? Muitas vezes sim, outras não conseguiram operacionalizar. Qual cenário podemos vislumbrar neste processo? Será que contribuímos para que os trabalhadores se tornassem protagonistas do seu trabalho? Os direitos duramente conquistados passam pela via da extinção. E agora? Agora nós temos uma nova configuração da demanda. Hoje somos mais experientes e temos competências mais consolidadas. Será que em virtude de tudo que articulamos pela ergonomia e psicodinâmica, temos condições de contribuir para que o poder de agir possa fazer face [a tudo isso]?”, refletiu Julia Abrahão.

Já a professora da Universidade de Campinas – Unicamp, Sandra Gemma, retratou em sua fala a intensificação do trabalho vivida por alguns setores que pesquisou, como a fabricação de semijoias e o trabalho das merendeiras. Ela constatou que mulheres são submetidas a condições diferenciadas e o uso do trabalho infantil.

“Estamos flexibilizando mais uns do que outros. A flexibilização não afeta de forma igual aos trabalhadores. O cenário atual atinge a todos, mas a terceirização, a informalidade e a precarização atingem de maneira diferente mulheres e crianças”, concluiu. “Precisamos retomar o sentido de comunidade, já que o Estado-Nação parece não poder enfrentar de forma efetiva o poder global extraterritorial”, completou Gemma.

Outra questão debatida foi a tecnologia. O professor da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Nilton Menegon, defendeu que não existe tecnologia desprovida de ato humano. Os ambientes virtuais e a virtualização da produção têm limites. “Mas se vende a ideologia de um mundo que independe do trabalho humano, que reforça condutas para banalizar a injustiça social”, alertou.

Para Menegon, é preciso inserir a ergonomia da atividade nos processos de automação. Além disso, a dependência do capital do trabalho humano é real, por mais que haja um discurso de que o trabalho seja banal.

Em busca da cooperação

A cooperação entre os trabalhadores foi outro aspecto levantado durante a Jornada. Para o professor da Universidade de Paris 1, François Hubault, mesmo que os novos meios possibilitem o trabalho a distância, é preciso ir às empresas para o compartilhamento dos valores criados e para a cooperação dos protagonistas. Em relação à ergonomia, destacou que os ergonomistas precisam abrir os ouvidos, analisar e retrabalhar a demanda, compreendendo fontes de outros campos, como o espaço econômico e psíquico.

O professor da Universidade Paris Diderot Paris 7, Christian Du Tertre, também acredita em formas de cooperação multidisciplinares para traçar uma trajetória de futuro. Ele cita como exemplos a ergonomia, a psicodinâmica do trabalho, a economia da cooperação. Para sair da precariedade, essa nova trajetória deve estar associada ao desenvolvimento sustentável, e o trabalho colocado no cerne da questão.

Para Du Tertre, a precarização não é intencional e é resultado de fenômenos que nos ultrapassam, marcados pela lógica do mercado. As mutações estruturais levaram de uma economia puxada pela indústria para uma economia de serviços, que traz novos desafios e mutações ao trabalho real.

“A ergonomia enfrenta o desafio do imaterial e deve manter esse elemento central – que é o real e o prescrito, e retomá-lo neste novo cenário”, afirmou Christian Du Tertre. “As novas tecnologias de informação tiveram impactos muito importantes… Também são importantes para criar novas atividades de serviço e de uma reimplementação do trabalho e do emprego”, completou.

O cenário atual é marcado pela financeirização, precedida pela precarização e flexibilização. Não há uma regulação entre a oferta e a demanda. “Nem todos temos as mesmas competências. Todos somos diferentes. Assalariados são levados a diversificar suas competências, que são flexibilizadas”, afirmou o professor da Universidade Paris Diderot. A flexibilização do emprego provoca a precarização, a instabilidade e baixos salários.

Uma das formas de mudar esse cenário e construir algo novo é promover a organização reflexiva fundada nos retornos das experiências, que se dá a partir de espaços de deliberação para discutir o que fazemos no trabalho. “Precisamos da reflexão de vocês para fazer as implementações no conjunto de trabalho que vocês conhecem”, defendeu Du Tertre. Também é preciso inventar um novo modelo econômico. “Vamos trabalhar para buscar novos caminhos por meio da multidisciplinaridade e da cooperação para criar um desenvolvimento sustentável”, concluiu.

 

Fonte: Fundacentro

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